quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O Gavião e a Harpia


Vocês não estão limitados dentro de seus corpos,
nem presos a casas e campos.
Aquilo que vocês são, vive acima das montanhas
e vaga junto do vento.
Não é algo que se arrasta até o sol para se aquecer,
ou cava buracos na escuridão para se proteger,
mas é um coisa livre, um espírito que cobre a terra
e se move no éter.
Kahlil Gibran - O Profeta
Hoje (27/10/2011) o dia foi no mínimo diferente. Acordei as 06hs15, tomei uma ducha despertadora – uma das poucas coisas boas do hotel em que estava hospedado – e fiz meu desjejum com um copo de suco de laranja e pão com manteiga. 

O dia todo transcorreu como uma tartaruga correndo uma maratona; se não fossem alguns coelhos altamente ativos a agitar o ambiente, talvez eu tivesse cochilado após o almoço. Aliás, o almoço foi bem bacana: picanha na manteiga com ervas, mix de arroz e purê com queijo cheddar; para encerrar, um potinho de iogurte com morangos, abacaxi e calda de chocolate – adoro essa combinação de azedinho doce.

Ao que o relógio marcou 17hs00 eu já estava dentro do taxi rumando para pegar o traslado para Campinas que saí do aeroporto de Congonhas. Algumas pessoas acham estranho ir para o aeroporto pegar ônibus, mas lá é mais próximo que o terminal rodoviário, fora o fato de as pessoas acharem que você está desembarcando de algum lugar interessante e puxarem conversa com você sobre a viagem – "sempre acontece" – é a frase que eu gostaria de escrever, mas as pessoas estão sempre tão ocupadas e conectadas a outras realidades virtuais, que não acontece sempre.

Frustrante foi chegar ao ponto do traslado e descobrir que ele acabara de sair e que o próximo, só sairia três horas depois. O aeroporto é um lugar bacana, muita gente diferente, outro tanto de gente bonita e esquisita; mas passar três horas me entretendo com as características das pessoas, não me pareceu agradável, então, decidi pegar um taxi para o terminal rodoviário.

Do aeroporto de Congonhas ao terminal rodoviário do Tietê, pode ser considerada uma viagem cheia de surpresas; basta observar a mega cidade que se fecha em arranha-céus ao seu redor e os motoboys alucinados que passam ao seu lado. 
Eis que para meu espanto, a surpresa da tarde estava dirigindo o taxi que me transportava. Não, não era uma loira maravilhosa com decote chamativo quem estava dirigindo o taxi, isso não seria uma surpresa, seria estar sonhando acordado.

Era um senhor de 71 anos, cuja primeira coisa que fez foi me criticar por não ter negociado a corrida com ele. E após minhas desculpas desajeitadas, começamos uma conversa tradicional entre taxista e passageiro. Foi quando ele me contou sobre as exigências dos passageiros atualmente, por carros com GPS. Ele me disse:

"Trabalho na praça como taxista, desde 1963, conheço cada formação e deformação dos bairros dessa cidade, aí as pessoas preferem confiar num aparelho que nem sempre está atualizado. Eu estou atualizado, todo dia sei a caca que o prefeito está fazendo nas ruas." – e me contou quando um grupo de executivos o desafiou contra o GPS. A marginal Tietê estava em obras – ainda está e acho que sempre estará, é algo surreal – então algumas saídas haviam sido bloqueadas e outras tinham sido criadas, obviamente o nosso amigo GPS não tinha as atualizações das obras e o querido taxista se saiu melhor que o aparelho, ganhando uns bons trocados dos executivos.

Mas essa não foi à história bacana, que me espantou e valeu a surpresa do dia. O seu Arnaldo tinha acabado de completar 71 anos e ele me disse, que sua atual esposa fizera aniversário no mesmo dia. Ele nasceu em 21 de Outubro de 1940 e a esposa em 21 de Outubro de 1977. Você fez as contas? Isso mesmo, a esposa do seu Arnaldo tem 34 anos, recém completados.

Isso me intrigou e continuamos a conversa. Naquele instante seu Arnaldo sacou duas fotos dele com sua amada Valquíria, e sorrindo disse: "Outro dia estávamos voltando do Nordeste" – deu uma olhada no retrovisor para verificar se eu estava prestando atenção e continuou - "duas garotas nos olhavam e cochichavam 'será que é a Preta Gil?' e a outra disse 'acho que não, o pai da Preta é o Gilberto Gil e não tem nada haver com o tiozinho ali', aí ela percebeu e me abraçou e deu um beijão, passando a mão com a aliança no meu pescoço, para as meninas verem que eu não era pai dela. Aí vem aqueles outros comentários 'esse véio deve ser cheio do dinheiro', e mal sabem que sou taxista." – e caiu na gargalhada.

A Val, como ele a chamou, era uma morena alta e que realmente lembrava as feições da Preta Gil, o que me instigou a perguntar como ele a conhecera. Nisso seu Arnaldo se encheu de orgulho: "A Val é louca por mim, nem sei o que é. Minhas filhas ficam doidas de eu estar com ela; uma delas não aceita de jeito nenhum – mas acho que ela me culpa por eu ter me separado da mãe delas. Mas a outra já falou com ela. Ela disse: 'Olha, não sei o que aquela moça viu no papai, mas ela é perdidamente apaixonada por ele!' – mas minha filha mais nova não quer nem saber, e minha atual esposa é mais nova do que ela."

"Eu conheci a Val por acaso, foi num aniversário que eu não tinha sido convidado. Uma amiga me levou como companhia. Quando chegamos à festa, estava tudo muito bonito, arrumado e havia uma mesa em que estavam uns amigos dessa minha amiga, assim fomos cumprimentá-los. Cumprimentei as pessoas, o pai da Val e quando ela se levantou para me cumprimentar, me deu um abraço tão apertado que eu quase sufoquei – mas é daqueles abraços gostosos, sabe? Aqueles que a gente não quer se desvencilhar – e acho que foi nesse momento que tudo começou. Eu me coloquei no meu lugar – afinal sou um senhor de 71 anos, na época eu tinha 69 anos – mas conversamos a noite toda, eu encantado com ela e, por mais incrível que pareça, ela encantada comigo." – ele olhou de novo no retrovisor do carro pra ver se eu não tinha dormido com o trânsito parado e eu pude ver seus olhos brilhando e o sorriso que não lhe saía do rosto – "Ela se encantou comigo, acha? Um motorista de taxi, com 71 anos, sem posses!" – ele disse.

"A Val é médica. Uma guerreira, tem duas especializações. Quando minhas filhas se mostraram contra nosso relacionamento, ela se posicionou e disse: 'Seu pai não é uma aventura pra mim, eu o amo e não quero nada que é de vocês, podem ficar tranqüilas que vou cuidar dele até o fim; até o fim da minha vida' – foi firme com as minhas filhas." – nisso seu Arnaldo deu uma conferida novamente no retrovisor, em mim, e continuou – "você acredita que ela passou o apartamento dela para o meu nome; isso eu – como homem – que tinha que fazer, mas não; ela disse: 'Naldo, se eu morrer o apartamento é seu, você não precisa pedir nada para suas filhas, nem justificar nada para minha família, o apartamento é seu' – eu disse pra ela que era absurdo, que pela lógica, era pra eu ir primeiro; mas ela é durona e não aceita que ninguém, nem mesmo eu, diga que estou velho."

"No final do mês a gente vai viajar de novo. A gente não para. E acho que nunca vivi tanto na minha vida. Aposentei-me como motorista de taxi; nunca tive muita coisa; mas consegui formar minhas filhas, ter uma casa que é da mãe delas agora. Eu preferi sair sem nada da separação e fui morar num hotelzinho boca-de-porco. Quem poderia imaginar que a vida ainda me reservava algo tão maravilhosa quanto a Val. Às vezes eu me belisco, mas ela continua comigo, cuida de mim e eu cuido dela. A idade nem parece que existe!" – e ao dizer isso, estacionou o carro na área de embarque e desembarque do terminal do Tietê.

Eu pedi um recibo, agradeci a maravilhosa conversa, e ele sorrindo me disse: "Sou mineiro! Começa a prosa, vai embora!" – e foi embora, me deixando cheio de pensamentos e mais algum tempo de viagem.

"A idade nem parece que existe!" – e não existe mesmo seu Arnaldo; idade é uma quantificação que homem criou para tentar saber se ele está perto do fim, ou não; e ele perde muito tempo com isso. Como diria a filosofia popular: 'O jogo só acaba quando termina'.

Para encerrar a publicação, um poema antigo que foi revisado, mas não alterado, pois em suma ele já dizia o que era para ser dito e acredito que combina com a história de hoje:

Sementes de um sonho
poesia de Nótlim Jucks

Em algum lugar
alguém permeia meus sonhos
com desejos que muitas vezes 
não serei capaz de realizar.
O homem vive cometendo erros
e dentre os maiores 
é não saber valorizar
tudo que consegue conquistar.
Houve um tempo em que os sonhos
eram apenas um conjunto de idéias,
imagens que atravessavam 
meu espírito durante o sono.
Por muitas vezes
estes olhos se encheram de lágrimas
mas o fato é que não houve 
vontade suficiente para transformar
todo imaginário passado em realidade presente.
É como se o curso da existência,
muitas vezes sofresse a influencia 
de um poder misterioso,
que fixava de maneira irrevogável
o curso dos acontecimentos da vida.
O amor pelo qual uma pessoa 
une o seu destino ao de outra pessoa
não parece ter qualquer ligação a este poder,
e sim a vontade destas duas almas de serem uma.
A solidão sempre acompanhou 
os caminhos por onde passei
e por este motivo muitas vezes chorei.
Hoje creio ter encontrado 
a fonte dos meus desejos,
tenho me banhado nela muitas vezes,
mas mesmo assim ainda cometo erros.
O tempo mostrou que 
aquele conjunto de idéias
que atravessavam meu espírito,
eram como semeadores 
que passam pelos campos.
Semearam algo bom dentro de mim,
e sinto que, o que nasceu não terá fim.