domingo, 8 de março de 2015

Sobre Mulheres e Lobos

A mulher moderna é um borrão de atividades. Ela sofre pressões no sentido de ser tudo para todos. E a velha sabedoria há muito não se manifesta. 
É chegado o momento.
Clarissa Pinkola Estés
Sobre Mulheres e Lobos
8 de março – 'Dia Internacional da Mulher'; hoje o Mirtu's Blog faz uma singela homenagem a mulher, que por definição é um ser humano adulto do sexo feminino, mas que para Jean Auguste Dominique Ingres é fabulosa e simplesmente definida como: "a origem".
A Origem, de Jean Auguste Dominique Ingres
No dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como, redução na carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho.

A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas, num ato totalmente desumano.
Incêndio na fábrica de tecidos
Porém, somente no ano de 1910, durante uma conferência na Dinamarca, ficou decidido que o 8 de março passaria a ser o 'Dia Internacional da Mulher', em homenagem as mulheres que morreram na fábrica em 1857. Mas somente no ano de 1975, através de um decreto, a data foi oficializada pela ONU (Organização das Nações Unidas).

Em 2005 ao participar de um projeto de democratização da leitura, tomei contato com o livro 'Mulheres que correm com os lobos' e consequentemente com o trabalho de Clarissa Pinkola Estés, PhD e erudita internacionalmente reconhecida; premiada poetisa, psicanalista junguiana e diplomata, além de contadora – guardiã de velhas histórias da tradição Latina.

Hoje, trago para vocês um extrato do trabalho desta mulher extraordinária e sua crença de que as velhas histórias de muitas tradições culturais podem reconectar as mulheres com sua alma e sua natureza selvagem (e aqui o uso do termo selvagem implica no contato natural com a essência, aproximando-se dos aspectos naturais, originais, onde o 'Ser Selvagem' apresenta uma integridade inata e limite saudável com sua identidade, distanciando-se do atual sentido pejorativo, de algo fora de controle).
Mulheres que correm com os lobos
O título do livro veio do estudo que a autora fez sobre os lobos, animais que ela percebeu ter muito em comum com as mulheres no que tange ao vigor, à natureza intuitiva e instintiva e a dificuldades. Como lobos, as mulheres têm sido demonizadas por qualquer sinal de vida selvagem e sua terra natal, cimentada; mas assim como muitas populações de lobos selvagens foram reestabelecidas, já é hora de as mulheres recuperarem o acesso aos seus espaços selvagens.

Mulheres que correm com os lobos, é sobretudo, um trabalho espetacular que deixou muitos outros para trás. Ele revolucionou a vida de muitas mulheres da mesma forma que João de Ferro fez com os homens. Com mitos e contos para cada aspecto concebível da vida, dizer apenas que é uma obra rica seria eufemismo. Só podemos pincelar o conteúdo, mas as duas histórias a seguir, extraídas do livro, conseguem dar uma ideia do que é a obra.

A mulher-foca

Certa vez, em um lugar rude, um caçador passava com seu caiaque. Já era noite e ele ainda não havia encontrado nada. Ele chegou a uma enorme rocha manchada pelo mar e, à luz do luar, seu olhar captou movimentos extremamente graciosos naquela rocha. Ao se aproximar, ele viu um grupo de mulheres belíssimas, nuas como quando primeiramente conheceram este mundo; em sua solidão, ele vivia dores de amor e de saudade. O caçador viu uma pele de foca na beira da rocha e a roubou. Quando as mulheres vestiram suas peles e nadaram de volta para suas casas no mar, uma delas percebeu que estava sem sua pele. O homem pediu: "Mulher, case-se comigo. Sou um homem sozinho." – Mas ela disse: – "Eu não posso me casar, sou de outra natureza, pertenço aos temeqvanek, que vivem lá embaixo."
Mulher-foca
"Seja minha esposa" – insistiu ele – "e em sete verões eu devolvo sua pele, e você poderá fazer o que quiser.". Relutante, a mulher concordou.

Eles tiveram um filho muito amado, Ooruk, a quem ela ensinou todas as histórias sobre as criaturas do mar que ela conhecia. Mas depois de um tempo sua carne começou a secar, ela empalideceu e sua visão começou a escurecer. Chegou o dia em que ela pediria a seu marido que devolvesse a pele que há muito havia roubado.

"Não" – vociferou o marido. – "você abandonaria seu filho e a mim?"

Na noite em que Ooruk ouviu uma foca gigante chamando no vento, ele seguiu o chamado em direção ao mar. Nas rochas, ele encontrou uma pele de foca, e ao cheirá-la percebeu que era de sua mãe. Ele a levou para sua mãe, que ficou profundamente feliz e agradecida, e acabou levando-o com ela sob a água ao lugar onde ela apresentou o menino à foca gigante e a todas as outras. Ela recuperou sua cor e sua saúde, porque havia voltado para seu lar. Ficou conhecida como a foca que ninguém poderia matar, Tanquigcaq, a foca sagrada. Depois de um tempo, ela teve de devolver seu filho à Terra, mas, em sua maturidade ele foi muitas vezes visto comungando com uma foca especial perto do mar.
Alma selvagem
A foca, diz Clarissa, é um símbolo antigo e belo da alma selvagem. As focas sentem-se geralmente confortáveis com os seres humanos, mas como mulheres jovens ou inexperientes, elas às vezes não têm consciência do perigo apresentado pelos outros, ou mesmo das intenções dos seres humanos. Todos, em algum momento, vamos vivenciar a "perda da nossa pele de foca", com o roubo da inocência ou do espírito, um enfraquecimento da identidade. No momento em que acontece, parece algo horrível ou, no mínimo difícil, mas depois ouvimos pessoas dizendo que foi a melhor coisa que aconteceu com elas, porque as ajudou a enxergar quem realmente são e o que a vida significa para elas. Essas experiências nos colocam em contato com coisas mais profundas.

A história evoca a dualidade entre o mundo "acima das águas" da família e do trabalho e o mundo oceânico dos pensamentos privados, das emoções e desejos. A alma-lar não pode passar muito tempo sem ser visitada, ou como a mulher-foca, nossas personalidades secam e o corpo perde energia. Muitas mulheres perdem a sua "pele de foca" ao se doarem muito, ou por serem demasiadamente perfeccionista, ou ambiciosas com insatisfação constante, ou pela falta de vontade de agir.

Todos querem um pouco da mulher moderna, mas tem de haver um ponto em que ela diz "não" e recupera sua pele de foca. Isso pode envolver qualquer coisa, de um fim de semana na floresta, a uma noite com os amigos, até mesmo ficar uma hora sozinha por dia, um momento exclusivo que ninguém pode fazer qualquer pedido. Algumas pessoas podem não entender tais ações, mas a longo prazo, elas beneficiam tanto a si, quanto a quem está ao redor, e essa reconexão revigora e restabelece a psique.

A mulher-esqueleto
Mulher-esqueleto
Era uma vez um pescador ártico solitário que, um dia, achou que tivesse pego um peixe grande que iria impedi-lo de ter de caçar por um bom tempo. Ele ficou animado quando houve uma grande puxada nas redes, mas ficou chocado quando viu o que tinha puxado para cima: o esqueleto de uma mulher. A mulher havia sido jogada de um penhasco pelo próprio pai e atingido o fundo daquela extensão de mar. Apavorado com sua "pesca", o pescador tentou devolvê-la ao mar, mas o esqueleto voltou à vida e o perseguiu por todo o caminho de volta ao iglu onde morava. Ele teve pena dela e a limpou, deixando que descansasse, antes de ele adormecer sozinho. À noite, ela viu uma lágrima rolar dos olhos do pescador e bebeu todas as lágrimas choradas por ele, de tão sedenta que estava. Durante a noite, ela pegou o coração dele e o usou para fazê-la voltar à vida, em carne e osso. Como pessoa novamente, ela se arrastou para dentro do saco de dormir com ele. A partir de então, o casal sempre fora bem alimentado, graças às criaturas do mar, que a mulher conheceu quando estava no fundo do mar.

Clarissa vê essa história sob o ponto de vista dos relacionamentos. Que quando estamos solteiros, procuramos alguém que nos ame o suficiente, ou que tenha bastante dinheiro para que assim como o pescador, "não tenhamos que caçar por um bom tempo". É que estamos apenas procurando mais vida para nossa vida, algo agradável e divertido.

No entanto, assim que damos uma boa olhada no que puxamos (talvez após a primeira fase de alvoroço), como o pescador tentamos "jogar de volta". Percebemos então que conseguimos mais do que esperávamos e que isso está ficando sério. A outra pessoa deixa de significar algo bom para nós e se torna a mulher-esqueleto – o horror de se estabelecer, a mortalidade, o compromisso a longo prazo, altos e baixos, idade, fim da vida atual. No entanto, se tivermos sorte, o "esqueleto" não aceitará nossa rejeição e nos perseguirá até o nosso lar (nossos limites e inseguranças). Com o tempo percebemos que esse ser tem muito a oferecer, que é atraente mesmo sendo assustador; por algum motivo desejamos fazer algo por essa pessoa.
A Noiva-Cadáver, um filme de Tim Burton
A história da mulher-esqueleto fala sobre o que Clarissa chama de o ciclo "vida-morte-vida". Nas culturas modernas, temos pavor de qualquer tipo de morte, ao passo que, nas culturas mais antigas, todos estavam cientes de que uma nova vida viria da morte. Quando nos coibimos de relacionamentos sérios, não é a outra pessoa que não conseguimos enfrentar, mas a falta de vontade de entrar no ciclo de respeito. Não vamos crescer nesse relacionamento, mas vamos procurar outro e, talvez, depois outro, de modo que só vivenciaremos uma alta continuidade da "vida". Isso faz a psique encolher. Toda relação possui muitos fins e começos, e o que para o nosso horror pode parecer o fim é muito mais provável que seja uma mudança necessária para que o relacionamento consiga se renovar.

Uma mulher, e também um homem, deve tornar-se consciente e abraçar voluntariamente o ciclo de "vida-morte-vida" se quiser estar em contato com sua natureza selvagem. Clarissa diz o seguinte sobre a mulher-esqueleto: "Ela submerge, gostando ou não, pois sem isso não pode haver o conhecimento verdadeiro da vida, e sem esse conhecimento, não pode haver fidelidade, amor verdadeiro ou devoção real."

Mulheres que correm com os lobos

A maioria das pessoas não lê esse livro como uma leitura normal. Você se verá lendo um capítulo em um momento e, em seguida, parando a leitura para refletir sobre o que foi lido. É assim que dever ser. À primeira vista, o livro parece gigante (mais de quinhentas páginas), mas trate-o como se fosse uma família de vozes e escute-as uma a uma. Deixe-o afundar vagarosamente e começará a entender por que ele inspirou tanta gente, não apenas as mulheres.
Reconectar-se
Alguém pode pensar: "Se eu abraçar a natureza selvagem que existe em mim, vou virar meu mundo e a minha família de cabeça para baixo". Não é assim, garante a Dra. Clarissa Estés: "Fazer isso leva mais integridade à sua vida pessoal e à sua existência, porque você não estará tentando andar por aí usando um disfarce, nem terá medo de criar, de amar, de perseguir o que é certo, não terá medo de confiar em sua intuição; uma mulher verdadeiramente consciente de seu poder e em sintonia com a natureza. Todas essas coisas são um direito inato e não há nada a temer."
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Um pouco mais sobre as mulheres:

A Mulher e O Desejo

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